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Da prisão civil do devedor de alimentos

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    FLP Advogados
  • 17 de jul. de 2018
  • 19 min de leitura

1 – BREVE INTRÓITO

A ideia posta neste artigo consiste na avaliação da prisão civil do devedor de alimentos à luz dos princípios traçados na Constituição Federal brasileira e da legislação infraconstitucional, de modo que apresentamos as seguintes indagações: entremostra-se razoável nos tempos modernos admitir a privação da liberdade de locomoção de pessoas (segregação corporal) a título de coerção civil, cujo fundamento residiria apenas na letra fria do artigo 5º, inciso LXVII, da CRFB/1988, artigo 528, § 3º e 911, § único, ambos do CPC, bem como do artigo 19 da Lei nº 5.478/68? Há coerência no decreto prisional do devedor de alimentos à luz dos valores protegidos e propósitos perseguidos pelo Direito Penal e aquele visado na esfera civil (coerção sobre o devedor para cumprir dívida civil voltada a subsistência do credor)? Quais os motivos para que tamanha distorção de tratamento jurídico ainda persista na legislação brasileira? A realidade do cárcere difere-se em razão da competência material do juízo que o decreta? Qual a repercussão do fenômeno da despenalização (Direito Penal) na questão da prisão civil? É sabido que a norma constitucional referida linhas atrás – diga-se, a mesma cuja redação prevê a prisão do depósito infiel (questão superada diante da Súmula Vinculante de nº 25 do STF) – e que trata da prisão por falta de pagamento da pensão alimentícia fundamenta-se na preservação do direito à vida do necessitado, englobando alimentos, saúde, habitação, vestuário, educação e outros).

Nada obstante, pretende-se aqui avaliar a privação da liberdade na sua essência, bem como alinhavar algumas relevantes considerações mediante o cotejamento das prisões civil penal. A prisão civil tal como se revela na sua essência e na realidade em que aplicada hodiernamente não apresenta resposta isonômica aos seus destinatários, tampouco representa medida razoável e proporcional na escala valorativa de bens juridicamente relevantes e dignos de tutela Estatal e muito menos significa respeito e concreção de postulados fundamentais que o Estado brasileiro assumiu perante a comunidade internacional.


2. DA PRISÃO PENAL E DA PRISÃO CIVIL POR DÍVIDA


2.2. Considerações sobre a prisão penal e a prisão civil


2.2.1. Conceito e natureza jurídica


A prisão simplesmente nada mais representa no plano fático, no mundo fenomênico, que a restrição do direito a liberdade de locomoção do indivíduo, vale dizer, cuida-se de medida voltada unicamente a restringir o direito de ir e vir e nada mais. Álvaro Villaça Azevedo, define a prisão como sendo “um ato de apoderamento físico, em que o aprisionado fica limitado em sua liberdade e sob sujeição de alguém; atualmente, sujeito à autoridade legitimada à realização desse ato.” (AZEVEDO, 2000:51)


A prisão é a pena por excelência numa sociedade que reconhece na liberdade um bem comum a todos os seus integrantes e que a ela estão ligados por sentimento universal e constante, qualidade essa que a faz representar um mesmo preço a todos, ou seja, um castigo igualitário. (FOUCAULT, 1991:208)


O direito brasileiro diferencia duas espécies de prisão, denominando a primeira “prisão penal” e a segunda “prisão sem pena” que, por sua vez, compreende a “prisão processual penal”, “civil”, “administrativa” e “disciplinar”. A prisão penal, diferentemente das demais antes apontadas, é dotada de manifesta finalidade repressiva e aplicada somente após o trânsito em julgado da sentença condenatória. (MIRABETE, 2002:359). Enquanto a prisão, qualificada como penal, goza de natureza jurídica sancionatória ou punitiva, dotada de marcante função retributiva em razão do mal injusto (crime) perpetrado pelo delinquente, a civil tem por escopo tão-somente compelir o devedor ao cumprimento de uma prestação obrigacional, tanto que uma vez adimplida esta (prestação) imediatamente opera-se a sua revogação. Nesse sentido, conforme registra Álvaro Villaça Azevedo, já decidiu o Supremo Tribunal Federal em Sessão Plenária realizada aos 3 de maio de 1984, que “a prisão civil não é pena pública ou privada, mas mera técnica processual de coerção” (RTJ 113/626, 79/851, 88/450, 98/685, JSTF, Lex 76/11). (2000:89)


Foi citado anteriormente que a prisão penal é dotada de marcante função retributiva em razão do mal injusto, ou seja, do crime praticado pelo agente. Necessário, assim, trazer em apertada síntese dois conceitos de crime: o primeiro, no sentido material, é toda e qualquer conduta que ponha em risco a existência do corpo social ou toda conduta humana que atinja interesses individuais ou coletivos relevantes para a sociedade, de modo a vulnerar, senão a sua própria existência, a sua conversação e seu desenvolvimento; o segundo, num sentido formal estabelecido à luz de determinada corrente doutrinária (Teoria Finalista Bipartida), crime é todo fato típico (previsto no tipo penal) e, consequentemente, ilícito (contrário à norma jurídica ou ao direito), exemplo: enquanto matar alguém é crime, pois tal conduta está prevista na lei penal (artigo 121 do CP) e é contrária à norma jurídica que “proíbe matar”, matar alguém em legítima defesa não é crime (sentido formal) na medida em que, embora previsto em lei tal comportamento (121 do CP), ausente o segundo elemento (ilícito), excluído, aliás, pelo próprio direito (artigo 23 do CP).

Tornando às considerações sobre a prisão penal e civil, nota-se, desde logo, o irregular emprego dicotômico da mesma solução (aplicação de medida restritiva da liberdade de locomoção) que leva em consideração aspectos unicamente qualitativos como se suficientes fossem a justificar a adoção de uma medida ou de outra, pois no primeiro caso prende-se o indivíduo por ter ofendido bens jurídicos reputados pela sociedade como de relevante valor social, moral, ético, pessoal, ou seja, dignos de maior proteção Estatal (vida, patrimônio, honra, liberdade sexual, fé pública, dentre outros), ao passo que no segundo também se prende o indivíduo, porém em razão do descumprimento de uma obrigação de cunho civil. Das ponderações encimadas, podemos assegurar que a prisão penal goza da natureza jurídica de sanção e a prisão civil de natureza jurídica de medida de coerção ao cumprimento de uma obrigação. É bem verdade que existem três teorias a respeito da natureza da pena (retributiva, ressocializante e mista), das quais tem prevalecido aquela que vê a imposição de pena como um meio de castigar o agente e ao mesmo tempo prevenir a sociedade de novas infrações penais, bem como a de ressocializar o agente. Todavia, considerando que o presente estudo visa traçar um paralelo entre as prisões denominadas penal e civil, procuramos estabelecer a natureza jurídica de ambas, aqui como critério formal de diferenciação, utilizando-se apenas das expressões mencionadas no começo desse parágrafo (sanção versus coerção), muito embora seja possível enxergar na sanção penal um modo de coerção a um “não fazer” (não praticar determinados comportamentos).


2.2.2. Peculiaridades e cotejamento


Como é cediço, o Direito Penal é o ramo da ciência jurídica voltado à proteção dos bens mais importantes e necessários à sobrevivência da sociedade. Não é sem razão que Luiz Regis Prado, afirma que “o pensamento jurídico moderno reconhece que o escopo imediato e primordial do Direito Penal radica na proteção de bens jurídicos – essenciais ao indivíduo e a comunidade”. (PRADO, 1999:47)


Sua tarefa, portanto, é a de tutelar bens e valores jurídicos selecionados pelo legislador ordinário como fundamentais à sobrevivência da comunidade, comungando dessa forma com a escola de pensamento dos iluministas que formularam a Teoria do Estado Moderno e, consequentemente, a Teoria do Bem Jurídico. Assim, a intervenção do Direito Penal deve ocorrer excepcional e subsidiariamente (axioma da ofensividade ou intervenção mínima), quando não suficiente a proteção conferida pelos demais ramos do Direito, todavia, em havendo a sua intervenção é porque realmente bens jurídicos tidos por fundamentais tiveram a sua dignidade ou relevância penal afetada, propiciando, por conseguinte, a imposição de sanções, dentre elas a pena privativa de liberdade, ou seja, a prisão penal.

O Direito Penal, na precisa definição dada por Gianpaolo Poggio Smanio, consiste:


“no resultado de escolhas políticas influenciadas pelo tipo de Estado em que a sociedade está organizada. O direito de punir é uma manifestação do poder de supremacia do Estado nas relações com os cidadãos, principalmente na relação indivíduo-autoridade. A situação histórica, portanto, condiciona o conceito de crime e, consequentemente, o conceito de bem jurídico e a sua importância para o Direito Penal”. (SMANIO, 2004:1)


Bens jurídico-penais, por sua vez, são “aqueles indispensáveis para a convivência humana na comunidade e devem ser protegidos consequentemente pelo poder coativo do Estado através da pena pública”. (JESCHECK apud LOPES, 2000:330)


De outra parte, na hipótese de lesão ou ameaça de lesão à bem jurídico cuja reparabilidade ou proteção possa ser satisfatoriamente obtida por intermédio dos demais ramos da ciência jurídica, tais como: o civil, o administrativo ou o trabalhista, resta peremptoriamente afastada a intervenção do Direito Penal, o que nos leva a segura conclusão no sentido que as sanções conferidas pelos referidos ramos da ciência jurídica possuem naturezas diversas umas das outras ou, ao menos, deveriam necessariamente ser distintas umas das outras, ainda que voltadas a tutela de bens ou interesses distintos. Nesta toada, apresenta-se o Direito Civil, ramo do direito privado, como um conjunto de normas destinadas a disciplinar as relações entre os particulares, sem perder de vista o interesse social ou coletividade, prescrevendo também sanções à parte que descumpri obrigações contratualmente assumidas ou que simplesmente cause danos a outrem, tais como a imposição de indenizações, multas, obrigações de fazer ou não fazer, dentre outras.


Tais sanções, contudo, jamais poderão se igualar às sanções previstas na órbita penal, notadamente a mais drástica admitida entre nós e que é a pena privativa da liberdade, exceção feita a pena de morte de que trata o Código Penal Militar brasileiro.


Não obstante, o que se pretende neste tópico é chamar a atenção do leitor quanto a absoluta incoerência em se admitir a medida prisional sob dupla identidade, ora concebendo-a como pena privativa de liberdade, ora como medida de coerção, assim o fazendo ao sabor dos pressupostos fáticos com os quais se pretenda justificar a sua aplicação, antecedentes esses dotados de valoração totalmente desproporcional e distinta.


2.2.3. Pontos comuns e pontos díspares


Como antes esposado, a prisão é a restrição de um mesmo direito, direito de ir e vir, direito de liberdade de locomoção. Michel Focault já advertia que “conhecem-se todos os inconvenientes da prisão, e sabe-se que é perigosa quando não inútil. E, entretanto não vemos o que pôr em seu lugar. Ela é a detestável solução, de que não se pode abrir mão.” (…) “A prisão: um quartel um pouco estrito, uma escola sem indulgência, uma oficina sombria, mas, levando ao fundo, nada de qualitativamente diferente.” (1991:208).


De fato, nada de qualitativamente diferente, como bem acima adverte Focault. Na realidade, em sendo a prisão uma medida sancionatória – pois suprimi um direito – independentemente da adjetivação ou qualificação que lhe queiram emprestar, valer dizer, civil, criminal, penal, processual, disciplinar etc., estará sempre o seu destinatário sujeito aos mesmos malefícios psíquicos, além da restrição do mesmo direito universal (liberdade), tenha ele praticado um mal maior e mais grave à sociedade consistente nos delitos ou simplesmente tenha ele inobservado – quiçá por impossibilidade financeira, erro de direito ou até mesmo intencionalmente – uma cláusula contratual, um encargo judicial ou uma obrigação de caráter alimentar.


Não se pode, evidentemente, distinguir um objeto desse mesmo objeto, senão de outros ainda que semelhantes. Pretender distinguir a prisão penal da prisão civil sob quaisquer aspectos exteriores, tais como o tipo de instalação física (cadeias públicas, quartéis, colônias agrícolas, penitenciárias etc.), condições de seu cumprimento (com direito ou não a progressão, detração, remissão, visitas etc.), atribuição de competência quanto à matéria (juízo penal, família, civil, trabalhista, fazenda pública etc), é um equívoco dos operadores do Direito, pois no fundo está se falando exatamente do mesmo instituto, inalterável ao sabor dos ventos.


Com efeito, tanto a prisão, restrição da liberdade de locomoção, aplicada como pena previamente cominada por meio de lei, em razão da prática de determinado crime, quanto a prisão, restrição da liberdade de locomoção aplicada como meio, forma ou simplesmente instrumento de coerção para que seu destinatário faça alguma coisa, obrigação de cunho estritamente civil, não apresentam quaisquer pontos díspares na medida em que ambas atingem o mesmo bem jurídico (liberdade de locomoção). Aliás, se existe algum ponto distintivo entre ambas as prisões e merecedor de registro, esse é a possibilidade da prisão dita civil se revelar em muitos casos drasticamente mais prejudicial e desumana do que a prisão dita penal, sobretudo porque acaba por resultar numa absoluta violação de inúmeros princípios consagrados no Direito Penal.

Vejamos. Dispõe o artigo 528, § 3º, do Código de Processo Civil, que na execução das decisões judiciais que fixam alimentos, o juiz determinará, caso o executado não pague a dívida ou se a justificativa apresentada não for aceita, protestar o pronunciamento judicial na forma do § 1 o e decretar-lhe- á a prisão pelo prazo de 1 (um) a 3 (três) meses. Cotejamos, então, essa hipótese com a do delinquente que é condenado por sentença penal definitiva ao cumprimento de pena restritiva da liberdade máxima de 4 (quatro) anos de reclusão pela prática do delito preconizado no artigo 155 do Código Penal (crime de furto). Este, em sendo primário, não tendo havido violência à pessoa quando da prática do delito e, ainda, tendo a seu favor as circunstâncias judiciais previstas no artigo 59 daquele diploma legal (culpabilidade, antecedentes, conduta social, personalidade etc) terá o direito a substituição da pena de prisão por restritiva de outros direitos que não a liberdade, tais como: prestação de serviços a comunidade, limitação de fim de semana, prestação pecuniária ou perda de bens e valores, ao passo que o devedor de alimentos que, delinquente não é (posto que inexiste norma taxativa descrevendo essa conduta como crime), terá a sua liberdade cerceada por meses e sem usufruir de quaisquer dos inúmeros benefícios concedidos ao preso delinquente, previstos tanto na Parte Geral do Código Penal, quanto na Lei de Execução Penal.

A falha, no entanto, não reside na impossibilidade de aplicação de tais benefícios penais (livramento condicional, suspensão do processo, suspensão da pena, progressão de regimes, remissão, detração, dentre outros) à hipótese da prisão civil, devendo mesmo ser voltados às hipóteses de infrações penais. O problema todo descortina à desatenção quanto ao fato de um mesmo bem jurídico denominado liberdade de locomoção ter sido eleito objeto de privação visando salvaguardar interesses valorativamente desproporcionais, ou seja, ora o interesse da sociedade diante de comportamentos mais graves e penosos (erigidos à categoria de infrações penais), ora o interesse de particulares diante de um crédito que exclusivamente lhe interessa.

Ora, se a prisão civil não decorre da prática de crime, mas sim, como vem sendo referida na jurisprudência, meio coercitivo para o cumprimento de obrigação, vale dizer, não ofende bens jurídicos considerados pelo corpo social como de suma relevância ao convívio pacífico de seus integrantes, tampouco compromete a própria sobrevivência do grupo, como admitir o encarceramento do devedor de alimentos por até três meses e ao mesmo tempo premiar com a liberdade aquele que à sorrelfa subtraiu bens de terceiro? Verdadeiro paradoxo que o Direito não pode tolerar. É notória a desproporcionalidade entre as respostas dadas pelo Estado àquelas hipóteses, resultando, como se vê, em maior prejuízo àquele que em tese não cometeu delito algum.


Note-se, por outro lado, que enquanto a sanção penal é individualizada de acordo com a culpabilidade e o mérito do sentenciado (princípio da individualidade da pena) e proporcional ao crime praticado pelo agente (princípio da proporcionalidade da pena), a prisão civil não reconhece tais características. Atente-se que não se está aqui a dizer que a prisão civil deva reconhecer aquelas citadas características. Longe disso! Visa-se, isso sim, demonstrar que a prisão de um indivíduo é medida Estatal (sancionatória sim) reservada exclusivamente à seara do Direito Penal, cuja finalidade já foi devidamente ventilada linhas atrás, mas não para servir, sob outra rotulagem, de instrumento de intervenção dos demais ramos do direito preocupados com situações ou comportamentos de somenos importância.


No entanto, solução existe, diga-se, sempre existiu. Seja em um cumprimento de sentença de pensão alimentícia ou mesmo numa execução de alimentos, percebendo o julgador que o devedor não paga e tampouco apresenta justificativa razoável ao seu inadimplemento, poderá oficiar o Ministério Público para adoção das providências cabíveis, enquanto titular da ação penal (artigo 129, inciso I, da CF). Isso porque o descaso, a inércia, a indiferença do devedor de alimentos poderá certamente configurar o crime tipificado no artigo 244 do Código Penal (abandono material), cujo Título VII trata dos crimes contra a família e cujo capítulo cuida especificamente dos crimes contra a assistência familiar.


Poderia ainda o legislador, de outra parte, agravar o preceito secundário (pena) do tipo penal acima mencionado, alterando o regime de cumprimento de pena ¨detenção¨ para ¨reclusão¨. Aliás, tais discussões ocorreram no Congresso Nacional quando da aprovação do Novo Código de Processo Civil, Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Com efeito, não é sem razão que, analisando a questão da prisão dos devedores civis, Cesare Beccaria em sua conhecida obra “Dos Delitos e das Penas”, p. 118-119, já advertia com absoluta propriedade que:


“Mas por que motivo bárbaro o inocente falido, aquele que após rigoroso exame provou diante de seus juízes que a malícia ou a desgraça alheia ou eventos inevitáveis da humana prudência o despojaram de seus bens, deverá ser atirado a uma prisão e privado do único e mísero bem que lhe resta – a liberdade? Por que deverá ele experimentar as angústias dos culpados e, com o desespero de sua probidade oprimida, arrepender-se, quem sabe, da tranqüila inocência em que vivia sob a tutela das leis que não estava em seu poder poupar da ofensa?”


E mais adiante, conclui:


“(…) afirmo que se sua obrigação há de ser inextinguível até o pagamento total, se não lhe for concedido subtrair-se a ela sem o consentimento das partes interessadas e de transferir para outra jurisdição a sua atividade – a qual, sob pena de sanções, deveria ser empregada para tornar a colocá-lo em condições de pagar os empréstimos, qual será então o pretexto legítimo, como a segurança do comércio ou a sagrada propriedade dos bens, que justifique uma inútil privação da liberdade, a não ser no caso raríssimo em que, supondo-se uma investigação rigorosa, os males da escravidão ocasionassem a revelação dos segredos de um suposto falido inocente.”


Antes as ponderações encimadas, fica evidente que o ponto de divergência entre as prisões ora cotejadas (penal e civil por dívida) restringe-se à nomenclatura, pois na realidade os destinatários das referidas prisões são atirados indistintamente à masmorra, sofrendo a privação de um mesmo e relevante bem jurídico que é a liberdade de locomoção, porém por causas substancialmente diversas quanto ao aspecto da lesividade social. Aliás, a prisão civil vem a ser mais gravosa do que a penal propriamente dita, eis que é cumprida integralmente em regime fechado e sem a possibilidade da aplicação das benesses de que trata a Lei de Execução Penal.


Por derradeiro, têm-se ainda o fenômeno da despenalização no Direito Penal e seu reflexo na prisão civil por dívida. A despeito da premissa de que a pena é um mal necessário para a proteção dos bens jurídicos essenciais, busca na verdade estabelecer um direito penal menos cruel e mais humanizador, procurando observar os direitos fundamentais do homem e a dignidade da pessoa humana, porquanto imperativos de justiça social. Tais direitos constituem verdadeiros vetores embebidos de forte conteúdo ético e axiológico que direciona ou procura direcionar toda a atividade dos membros da sociedade, servindo, inclusive, como elemento interpretativo do ordenamento jurídico nacional e internacional.

Não se pretende por meio do indigitado fenômeno implantar a tese abolicionista propalada pelo holandês Louk Hulsman, pelo alemão Sebastian Sheerer, bem como pelos noruegueses Thomas Mathiesen e Nils Christie que, em apertada síntese, prega utopicamente o fim do sistema penal (abolicionismo penal), mas sim concentrar esforços visando a substituição das penas privativas de liberdade cominadas aos indivíduos que venham a praticar infrações penais menos graves ou, ainda, abolir de maneira pontual alguns tipos penais que não trazem hodiernamente maior lesividade social. Isso se sucede porquanto o fenômeno jurídico leva em consideração três elementos essenciais a sua constituição, a saber: fato, valor e norma, conforme teorizado por Miguel Reale (1984:507-511). O segundo elemento dessa tríade, vale dizer, o elemento valor, goza de certo destaque uma vez sendo o Direito objeto cultural criado pelo homem e, portanto, dinâmico por natureza, ocorre uma constante mutação na valoração dos bens jurídicos em razão dos avanços sociais, tecnológicos, científicos etc., e que em razão disso condutas outrora social e criminalmente condenáveis, aqui no sentido de ilícitas e típicas, passam a ser aceitáveis na comunidade ou ao menos irrelevantes para fins penais, ensejando sua descriminalização, ou seja, o fenômeno social da descriminalização decorrente da constante mutação na valoração dos bens e interesses jurídicos confere ensejo a descriminalização no plano jurídico, tecnicamente denominada “abolitio criminis”.

No fundo, o fenômeno da despenalização e o da descriminalização, quer pontual, quer total (abolicionismo penal), guardam entre si o propósito de solucionarem o caos do sistema penitenciário presente praticamente em todos os países, pois o método tradicionalmente conhecido e empregado (medida constritiva da liberdade de locomoção) não tem produzido qualquer resultado benéfico, senão a elevação do índice de reincidência. Assim, na visão desse movimento, a descriminalização e a despenalização de várias condutas delituosas, bem como a aplicação de medidas punitivas alternativas, vale dizer, medidas que não afetem – ao menos diretamente – o jus libertatis, poderiam contribuir decisivamente na regeneração e reeducação do infrator, evitando-se a destruição de sua auto-estima e da força de recomeçar. (NUCCI, 2002:15)


Postas as considerações acima, cumpre-nos refletirmos sobre possíveis repercussões do fenômeno sob comento sobre a prisão civil por dívida de alimentos. Evidentemente, é recomendável que se extraiam reflexos favoráveis à proscrição definitiva da prisão civil por dívida de alimentos em nosso ordenamento jurídico haja vista o propósito buscado pelos referidos movimentos.Com efeito, o conhecimento não se limita exclusivamente a idéias preconcebidas, noções e princípios, mas sim da própria realidade observada no dia-a- dia e sujeita a experimentações e mutações. Deixemos de lado o saber contemplativo do que já existe para nos empenharmos no saber ativo, investigando os fatos do começo, destruindo e reconstruindo, duvidando de tudo, seguindo-se, dessa forma, o método ou os caminhos abertos pelo filósofo René Descartes no século XVII. “O método adquire um sentido de invenção e descoberta, e não mais a possibilidade de demonstração organizada do que já é sabido”. (ARANHA & MARTINS apud MOYSÉS, 2004:43-44)

Não podemos nos louvar apenas das deduções racionais (racionalismo de Descartes), abrindo mão das lições advindas da experiência (empirismo de Francis Bacon), para chegarmos a referida conclusão. Ora, se o direito é objeto cultural criado pelo homem e dotado de conteúdo valorativo, portanto, uno e dinâmico, é evidente que os objetivos defendidos no campo penal (respeito à dignidade da pessoa, humanização da pena, ressocialização do indivíduo etc.) e as respectivas críticas feitas ao sistema carcerário e à própria prisão (desagregador social, familiar e pessoal), consoante idéias advindas dos citados movimentos contrários a medida constritiva da liberdade de locomoção, são perfeitamente aplicáveis à questão da prisão civil, pois lhe trazem subsídios e elementos suficientes à abolição da prisão civil por dívida de alimentos.

Vejam que tanto a despenalização quanto a descriminalização são voltadas a comportamentos lesivos a bens jurídicos protegidos pelo Direito Penal, preocupado em assegurar a manutenção da sociedade. Os ilícitos que puderem ser tratados por outros ramos do Direito, como o civil, trabalhista ou administrativo, escapam da tutela penal. Ora, na medida em que surge todo um movimento de idéias contrário a prisão de autores de determinados delitos tidos como de menor potencial ofensivo, com maior razão há de se pensar na proscrição definitiva da prisão civil de que trata a CF, o CPC e a legislação especial de regência. Do contrário, teremos uma situação paradoxal consistente na coexistência de rumos adotados pela mesma ciência, porém em sentidos opostos. Enquanto parte dela (criminal) pensa na manutenção da medida prisional como mal necessário e, portanto, voltado excepcionalmente para situações indispensáveis à segurança e paz social (cominação apenas para graves delitos, cuja condenação no caso concreto tenha sido expressiva), outra (civil) a mantém sob o simplista fundamento de que existe previsão legal para tanto, olvidando-se da unicidade e coesão da ciência jurídica. Atente-se que a prisão ora objurgada não decorre de uma sentença penal condenatória decorrente da prática do crime previsto no artigo 244 do CP. Se assim o fosse, certo o seria.

De outra banda, a experiência do dia-a- dia nos tem revelado todas as perniciosidades que o sistema prisional oferece, ressabidas entre nós, tais como: a falta de higiene, de ventilação e de luminosidade, ambiente propício a proliferação de doenças, promiscuidade, insegurança, tensão, traições, humilhações, ociosidade, dentre outras consequências maléficas ao ser humano enclausurado.


3. Da conclusão


Com efeito, a prisão sob comento tem sido definida como meio coercitivo empregado a compelir o devedor ao cumprimento de suas obrigações diante de seus necessitados. No entanto, a bem da verdade, a referida prisão não passa de meio punitivo, como, aliás, bem ponderou Pisapia, ao expressar “Todas as legislações modernas reconhecem, hoje e para o futuro, a necessidade de recorrer à sanção penal para assegurar o respeito e o cumprimento das obrigações que encontram sua fonte numa relação de família.” (apud GOMES, 1984:9)


Assim, temos nela uma verdadeira agressão ao direito de liberdade do devedor, vale dizer, um modo de execução pessoal com indisfarçável caráter de vingança privada, muitas vezes um verdadeiro afago aos anseios mesquinhos do cônjuge descontente com a ruptura conjugal, desagradando a própria prole que não raras vezes encabeça a ação.

De outra banda, a prisão em si, como é óbvio, além de não oportunizar a solução da dívida (a detenção do devedor inviabiliza a sua potencial produção de riqueza), não guarda a mínima correspondência lógica com a gravidade do ato praticado. Se realmente grave fosse, teríamos (a sociedade) há muito tempo erigido a referida conduta (omissão injustificada de pagamento de alimentos) em tipo penal incriminador (delito) ou ao menos em infração penal de menor potencial ofensivo, tais como as contravenções penais. Esse raciocínio, é bom que se diga, tem por pressuposto a racionalização dos sistemas jurídicos.


A Constituição Federal, dispõe no artigo 5º, inciso LXVII, que “não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel.” Nesse sentido, Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), também prevê a mesma regra proibitiva da prisão civil por dívida, excepcionando-a, contudo, exclusivamente em virtude do inadimplemento injustificado por débitos alimentares.


Assim, a nosso sentir, a prisão decorrente de dívida alimentar não merece vingar uma vez que representa indisfarçável medida de vingança privada, aliás, muito mais inflamada quando verificada num contexto familiar entre cônjuges ressentidos. Além do mais, é mais do que sabido que a sua perfectibilização não oportuniza o pagamento pelo devedor, mas que, se resultado útil acaba por produzir, certamente isso se sucede dada a sua natureza chantagista. Dessa forma, justificar a prisão civil à luz desse dispositivo constitucional é o mesmo que conferir interpretação ampliativa ou extensiva de medida excepcional (prisão) prevista na Lei Maior, sem contar o fato de inexistir previsão legal infraconstitucional de natureza penal para essa hipótese.


Contudo, a Corte Suprema brasileira tem admitido a prisão civil, firmando o entendimento de que persiste a constitucionalidade desta medida restritiva da liberdade, conforme se depreende do julgamento do HC nº 72.131, RE nº 206.482, RE nº 362258, dentre outros, respaldando-se, tais decisões, na primazia do que foi positivado pontualmente no Texto Constitucional.


Com efeito, não podemos esquecer que a proteção dos valores da pessoa humana é medida que se faz imperiosa e irreversível dada a natureza desses valores como princípio geral do direito, inclusive também com previsão constitucional no Título I da Carta Magna que trata dos princípios fundamentais de nossa nação. A dignidade da pessoa humana é vetor formador de Direitos Humanos, pois compreende o ser humano na sua integridade física e psíquica; é limite de aplicação de outros direitos e forma interpretativa das normas.


Ingo Wolfgang Sarlet, ao comentar o princípio da dignidade da pessoa humana, com absoluta propriedade, assim dissertou:


“Posição semelhante foi, recentemente adotada na doutrina pátria, sugerindo que o princípio da dignidade da pessoa humana, expressamente enunciado pelo art. 1º, inc. III, da nossa CF, além de constituir o valor unificador de todos os direitos fundamentais, que, na verdade, são uma concretização daquele princípio, também cumpre função legitimatória do reconhecimento de direitos fundamentais implícitos, decorrentes ou previstos em tratados internacionais, revelando, de tal sorte, sua íntima relação com o art. 5º, § 2º, de nossa Lei Fundamental.” (2001:99-100)


O valor da dignidade da pessoa humana, nas palavras da Professora Flávia Piovesan, “impõe-se como núcleo básico e informador de todo ordenamento jurídico, como critério e parâmetro de valoração a orientar a interpretação e compreensão do sistema constitucional.” (2000:53)


Portanto, sujeitar uma pessoa ao cárcere, fora das hipóteses legalmente previstas no Código Penal, Leis Especiais ou Extravagantes, colocando-a em risco de sofrer todos os males físicos, psicológicos e sociológicos que dele decorrem, significa retroagir aos tempos medievais, significa desarmonizar a ciência jurídica, ferir a progressão natural da sabedoria humana, ignorar critérios de razoabilidade, proporcionalidade, enfim, sepultar o senso de justiça.


E, nas palavras de Celso Antônio Bandeira de Melo, o princípio jurídico representa “mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico.” (2003: 450-451)


Denota-se, à evidência, a absoluta incoerência em se admitir a medida prisional sob dupla identidade, ora concebendo-a como pena privativa de liberdade, ora como medida de coerção, assim o fazendo ao sabor dos pressupostos fáticos de que se pretenda justificar a sua aplicação, antecedentes esses dotados de valoração totalmente desproporcional e distinta. De fato, nada de qualitativamente diferente. Em sendo a prisão uma medida sancionatória – pois suprimi um direito – independentemente da adjetivação ou qualificação que lhe queira emprestar, valer dizer, civil, criminal ou disciplinar, estará sempre o seu destinatário sujeito aos mesmos malefícios psíquicos, além da restrição do mesmo direito universal (liberdade), tenha ele praticado um mal maior e mais grave à sociedade (delito) ou simplesmente tenha ele inobservado – quiçá por impossibilidade financeira – uma obrigação de caráter alimentar.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BANDEIRA DE MELO, Celso Antonio. Curso de Direito Administrativo, 16 ed. São Paulo: Malheiros, 2003.

BECCARIA, Cesare Bonesana. Dos delitos e das Penas. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Nascimento da Prisão. Tradução de Ligia M. Ponde Vassallo. 8. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1991.

MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal. 13. ed. São Paulo: Atlas, 2002.

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Maurício Cordeiro, advogado militante, pós-graduado em Direito Constitucional.

 
 
 

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